Considerações em torno de uma dedicatória

Rosa Soares Nunes

Texto escrito para apresentação no Congresso Internacional 50 Anos de Pedagogia do Oprimido, promovido pelo Instituto Paulo Freire de Portugal, na FPCE UP de 11 a 14 de Julho de 2018.

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Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a Liberdade seja a nossa própria substância.  (Simone de Beauvoir).

Três séculos antes, Espinosa inscreve na diferença entre filosofia e teologia a questão da liberdade de pensamento:

Se pensar é entregar-se ao trabalho espontâneo do intelecto, que tem seu próprio ser no movimento interno e espontâneo de produção, afirmação e articulação de ideias, então, saber é pensar livremente. (p.12)

E Marilene Chaui (2009), no seu estudo sobre o filósofo, esclarece que a liberdade de pensamento defendida por Espinosa, “Longe de ser a vaga aceitação da multiplicidade de opiniões que povoam o social, longe de confundir-se com a noção de tolerância, defendida pelas ceitas religiosas do sec. XVII ou pelos filósofos do sec. XVIII, a liberdade de pensamento de Espinosa, que exige a plena visibilidade da prática política, é simplesmemte poder pensar e poder agir sem obediência a ideias, preceitos, mandamentos e decretos transcendentes” (p. 14)

Fazendo da filosofia o contradiscurso da teologia, Espinosa esclarece que a busca do fundamento não transforma a filosofia em teologia e, em contramão, leva-nos a adivinhar o carácter teológico de muita ciência profana: um saber incapaz de compreender o seu próprio fundamento, incapaz de alcançar a sua própria génese e a do discurso que profere.

Poucas vezes um significante terá concentrado em si a força de um tal comprometimento com o mundo: na certeza de ser o conhecimento o mais potente dos afectos, a dedicatória de Pedagogia do Oprimido esparge em significações, na procura de um saber capaz de compreender o seu próprio fundamento, um saber libertador.

 Aos esfarrapados deste mundo e

aos que neles se descobrem

e, assim descobrindo-se, com

eles sofrem, mas, sobre-

tudo, com eles lutam.

 11 H da manhã de um claro dia de sol. No meio do burburinho de gente atarefada, na parte superior do elevador de Salvador da Bahia, ao rés da parede, um corpo franzino de criança, sem idade, deitado no chão, agarrado a um croissant e a uma lata de cocacola, intervalando o trincar esforçado com beber um gole a custo, olhos de um sono irreprimível, a deixar-se por instantes adormecer. E logo o retomar do mesmo ciclo de intermitências. Estranhamente, no final, consegue arranjar forças para se levantar e, civilizadamente (que ironia!), deitar a lata ao lixo. E voltar a deitar-se no chão. Ninguém dá por ele.

 Podia acontecer noutro lugar qualquer. O abandono e a solidão estão internacionalizados. São os custos para a esmagadora maioria da humanidade que ficou de fora da redoma de conforto, de fronteiras invisíveis mas intransponíveis, criada pela actual globalização para menos de um terço da humanidade. O resto fica de fora.

Fiquei ali especada. Agarrada ao chão. O meu encontro com um capitão da areia! Não na tela, não no livro da minha insubmissão adolescente, mas com o mundo. Numa pega de caras.

Meu avô dava grandeza ao abandono.

Era com ele que vinham os ventos a conversar.

Sentava-se ele sobre uma pedra nos fundos

do quintal,

E vinham as pombas e vinham as moscas a

Conversar.

Saía do fundo do quintal para dentro da

Casa,

E vinham os gatos a conversar com ele.

Tenho certeza que meu avô enriquecia

a palavra abandono.

Ele ampliava a solidão dessa palavra.

E as borboletas se aproveitavam dessa

amplidão para voar mais longe.

Só o silêncio faz rumor no voo das borboletas

                                                                     Manoel de Barros

 

Nos finais dos anos 80, Paulo Freire, em resposta a uma “provocação” quanto a ser ele um clássico, e reinterpretando-a de modo incisivo:

Sou um clássico, sim. Não porque subjectiva e presunçosamente deste modo me considere, mas porque, como clássico sou considerado por todas aquelas e todos aqueles que encontram na minha obra um instrumento para enfrentar um clássico problema: a existência de opressores e oprimidos. Por isso, enquanto esse problema persistir, quero continuar chateando, incomodando e fustigando os que, contemporâneos meus ou não, defendam a permanência das desigualdades. (Cortella, 2001).

É quando a consciência das desigualdades atinge níveis insuportáveis da sua aceitação passiva, que talvez possamos falar seriamente de uma entidade tão incómoda, por tão subversiva, como é o amor.

Para Hegel o amor é o conhecer que no Outro se conhece, isto é, em que cada um se assemelha ao outro justamente por se lhe ter contraposto.

O seu distinguir-se do outro é, pois, o seu equiparar-se a ele, e é conhecimento precisamente porque para cada um e para si mesmo a sua oposição se muda em semelhança ou porque se conhece a si mesmo tal como se intui no outro[1].

 Em Paulo Freire explicita-se o conhecer-se no Outro fazendo depender dessa relação intersubjectiva a formação do próprio EU, erigindo o amor à condição sem a qual não há espaço dialógico.

Na tensão entre reconciliação e conflito prévio se afirma e se revela a identidade baseada no conhecimento recíproco, na união complementar de sujeitos que se encontram contrapondo-se.

Ao arrepio desta tensão dialógica, matricial à acção educativa, o esquecimento do Outro vem impregnando as nossas relações, reduzidas que vão estando aos ditames do alcance global do capitalismo e do modo como ele introduz em todo o mundo uma divisão de classes radical, num mundo que nos compromete todos os dias com a sonolência em que “vemos ouvimos e lemos”… e podemos ignorar. A questão dos refugiados e dos migrantes é esclarecedora. Ela inscreve-se nas dimensões psicológica (internalização/externalidade), social, ética e política de uma pedagogia do oprimido.

No dizer de Peter Mc Laren (2001), “o que distingue Paulo Freire da maioria dos outros educadores de esquerda, nestes tempos de razão cínica, é a sua insistência, sem a mínima vergonha de fazê-lo, na importância do poder do amor”:

 (…) Onde quer que estejam estes, oprimidos, o acto de amor está em comprometer-se com a sua causa. A causa da sua libertação.

 Mas, se no conversar, pondo dentro da conversa a vida, P. Freire como que corporifica esse amor, no próprio texto – ainda quando a sua penetrante análise das relações de opressão tem o pendor mais explícito de construção teórica – ele surpreende-nos com a cadência e a sonoridade de um conto cem vezes contado, introduzindo a magia de uma atmosfera inclusiva que persuade à comunhão com a paixão com que enfrenta a causa da igualdade e da emancipação.

E, nessa paixão, atravessa o tempo no raro dom de transformar o enigma lógico ou as provocações didáticas numa poética da comunicação.[2]

Foi em pleno processo revolucionário do 25 de Abril (a nossa revolução de Abril de 1974) que me dei conta da Pedagogia do Oprimido.

A minha história pessoal de ligação à alfabetização de adultos vinha dos inícios da década de 60 (em plena ditadura salazarista) quando, com 20 anos acabados de fazer, e na condição de professora das crianças de uma aldeia próxima de Alcobaça – onde a jorna, quando a havia, mal dava para mitigar a fome – num quadro de pobreza extrema, eu guardava as horas do entardecer para ensinar os pais dos meus alunos a ler quando vinham do campo e passavam à casa de um casal de pequenos agricultores aonde, na entrada que dava para a adega – e era o vão de escadas insalubre do 1ª andar onde eu morava com os donos da casa – à luz de um candeeiro de petróleo, nos acomodávamos: corpos cansados e, no olhar, um misto de humilhação e de esperança num almejado e distante diploma da 4ª classe, na imaginação de fugir a um destino de miséria.

Mas foi nos finais dos anos 70[3] que, ainda sob o efeito desse relâmpago de claridade que foi a nossa Revolução, como alfabetizadora e coordenadora concelhia do (Plano Nacional de Alfabetização e Educação Básica de Adultos), a minha história se cruza mais directamente com a “praxis” freireana – e é intencionalmente que o parafrasio, no uso da terminologia marxista (praxis) com que ele se refere à sua própria agência, no âmbito da alfabetização. Coordenação que, abrangendo as freguesias da sede do Concelho administrativo de Moura e todas as freguesias dispersas, na altura muito populosas, se revestiu de uma prática de convergência entre os princípios da Educação Permanente (muito informados pela reflexão de Avanzini e de um conjunto de autores que desenvolviam trabalho em torno deste conceito), e a da Educação Popular, com Paulo Freire por inspiração. Mobilizada a população e as instituições locais, num projecto em que se sentiam reconhecidas, as pessoas tomaram a palavra e nela se transcendiam.

 As memórias, contadas ou cantadas, ganhavam estatuto de sabedoria nas conversas em que convocávamos o valor da sabedoria do povo, quando convidávamos os professores e as professoras à reflexão, também eles e elas envolvidos no continuum em que passou a configurar-se o quadro inter-geracional de aprendentes, imprimindo um sentido comunitário de reciprocidade cognoscente ao trabalho aí desenvolvido.

No tom de uma “encomenda social”, no sentido de Maiakovsky, a Pedagogia do Oprimido era um estímulo vigoroso e uma fonte de esclarecimento da luta contra a opressão.

 E nela se nutria o conforto de nos sentirmos acompanhados nessa luta.

 Porque para Freire “os próprios procedimentos do processo de alfabetização e o acto de vir a conhecer devem ser transformados de modo que atribuam posição de destaque às questões da justiça social e da luta pela emancipação.” (McLaren, 2001).

 Como ele esclarecia, a educação popular não se confunde nem se restringe somente aos adultos. O que caracteriza, o que define a educação popular não é a idade dos educandos, mas sim, a opção política. (Freire, 1985) .

 O reconhecimento dos fundamentos das tradições populares e a importância da construção colectiva do conhecimento são, no meu entendimento, a deriva epistemológica que propicia condições de capacitação dos oprimidos para “analisarem a sua própria condição na engrenagem da hierarquia, calcada em privilégios da sociedade capitalista, e a se comprometerem com tentativas de deslocamento dos ciclos de reprodução social existentes”. (mcLaren, 2oo1)

Na visão freireana, para que os oprimidos convertam as suas próprias actividades em força revolucionária, precisam de desenvolver uma consciência colectiva da sua própria condição ou formação como classe subalterna.

Porém, como começa a ser preocupação entre muitos dos estudiosos de Freire, o desvirtuamento da abordagem educacional freireana é uma ameaça co-ocorrente a alguns modos subtis de domesticação da pedagogia crítica.

“A sua relação actual com lutas mais amplas pela libertação, com ênfase na luta de classes revolucionária, parece estar seriamente atenuada, senão fatalmente emudecida.” (op. Cit., p.188).

 E é convicção desses autores que há poucas dúvidas de que a sua obra esteja sendo domesticada por alguns dos seus seguidores – na medida em que determinados aspectos do “corpus” desta obra são apropriados sem o devido tratamento crítico e são descontextualizados do projecto político do autor: a luta por uma sociedade genuinamente socialista (op. Cit. p.189).

Reiteradamente, ele insistiu “em que a sua análise e a sua crítica à educação bancária (…) se referiam à educação como um todo e, sobretudo, à sociedade para a qual essa educação bancária servia de base. A alfabetização de adultos foi o ponto de partida e de intervenção que lhe permitiu olhar criticamente a totalidade do fenómeno educativo” como esclarece Rosa M. Torres (2000)[4]. Na clareza das suas próprias palavras:

Muita gente pensa que eu desenvolvi todos estes temas porque sou especialista em alfabetização de adultos. Não, não e não. Não é assim. É lógico que a alfabetização de adultos é algo que eu estudei profundamente, mas estudei este tema devido a uma necessidade social do meu país, como um desafio. Em segundo lugar estudei a alfabetização de adultos dentro do contexto da educação e dentro do contexto de referência da teoria do conhecimento, mas não como algo em si mesmo, porque como tal não existe.

Paulo Freire acreditava que o desafio da transformação da escola deveria estar direccionado para a superação da injustiça social e económica, ligada às estruturas político económicas da sociedade. Ignorar que essa abordagem, como totalidade sistémica, estabelece uma compreensão bastante incisiva dos modelos de distribuição e de redistribuição com o propósito de transformar, e não apenas interpretar as estruturas económicas a eles subjacentes, que geram relações de exploração, é, de certo modo, deixar de fora as ideias mais relevantes da sua obra.

É por isso que Educação Bancária é uma metáfora quase sublime. Nela se localiza a experiência da situação vivida no interior de um todo singificativo. Isto é, um mapeamento cognitivo em que a luta de classes sobredetermina todas as outras lutas, no lugar conceptual do “universal concreto” de Hegel. Num só golpe significante, nela se define o trajecto que subjaz à inculcação do mais pregnante sentido de mercado na relação de estranheza da pessoa com o seu contexto, com o Outro, consigo própria, subtraído que fica o lugar de uma estética de aproximação. E dificilmente encontramos lugar de melhor esclarecimento dessa relação alienante do que os lugares da escrita de Marx para que a Pedagogia do Oprimido tanto remete:

O desapossamento do operário do seu produto tem o significado, não só de que o seu trabalho se torna um objecto, uma existência exterior, mas também de que ele existe fora dele, independente e estranho a ele e se torna um poder autónomo frente a ele, de que a vida que ele emprestou ao objecto, o enfrenta de modo estranho e hostil[5].

 Não é o trabalhador que utiliza os meios de produção – afirma Marx, rasgando o tempo na actualidade do seu pensamento – são os meios de produção que utilizam o próprio homem. Em lugar de surgirem consumidos por ele, como elementos materiais da sua actividade, são eles que o consomem como fermento do seu processo vital[6]. E esta é uma constatação brutal e de uma estonteante actualidade.

Nesta inversão do sujeito em objecto e vice-versa, nesta subjectivação das coisas e coisificação das pessoas está o sentido da alienação do trabalho e, portanto, da natureza humana, num processo impessoal da sua transformação de fim em meio, de pessoa em instrumento da sua própria dominação.

 A Pedagogia do Oprimido é um lugar conceptual onde as proposições se convertem e dão expressão maior à função interrogativa da linguagem:

O nosso discurso emancipatório que (de par com o obscurantista) se perde na noite dos tempos, que efeito propulsor do desenlace de maior decência nos diferentes níveis de relações de uns com os outros tem tido sobre as “forças do mundo”? Ou, mais incomodamente: quanto desse discurso tem sido travão involutivo do que se diz arauto? Qual o nível da nossa cumplicidade com este novo darwinismo social que, quotidianamente, consolida estratégias de concentração, nunca vista, da riqueza e do conhecimento produzidos, em meia dúzia de mãos alheias à dor e à humilhação que, num gritante silêncio, avassalam este nosso mundo?

A própria universidade, erigida a fórum privilegiado de debate e produção científica, em que estado se encontra no seu comprometimento com o trabalho de despertar a sensibilidade social e envolvimento dos estudantes nas tarefas (exigentes de um sério trabalho ao nível simbólico) de transformação social? Encravada entre uma produção conceptual, vezes demais cristalizada na teoria sobre a teoria, alheada da “coisa em si”, e uma “agressividade” interventiva que pouco ou nada tem a ver com o favorecimento da consciencialização das populações mais vulneráveis às consequências de uma diferenciação desigual na repartição da riqueza e do conhecimento produzido, para a tomada em mãos da resolução dos problemas que verdadeiramente as afligem mas, quantas vezes, com preocupações academicistas que sobrelevam e encaminham energias e sinergias para o lugar da disputa no âmbito de uma carreira que eleva a competição a níveis que fazem inveja à que se processa no âmbito das instituições do mercado capitalista. Assoberbada por uma racionalidade burocrática, que também transparece na pressurosa adopção de uma linguagem neoliberal, nem se pergunta: com tanta reflexão, com tanto debate, com artigos produzidos em catadupa – correndo sério risco de se confundir produção de conhecimento com fabricação de papel – como este curso do mundo?

E retomo Simone Beauvoir: O Presente não é um passado em potência, ele é o momento da escolha e da acção. Em Paulo Freire, a palavra decidir sempre tem por perto o conceito de ruptura, quando inscreve homens e mulheres como seres éticos, capazes de decidir, de romper, de escolher.

A linguagem de Paulo Freire é poética e política. Como poderia ser de outro modo se ela tem os condimentos que lhe dão a dimensão revolucionária?

 Na lembrança de Carlos de Oliveira, o que a sociedade pede aos poetas hoje, mesmo que o peça nebulosamente: “evitar que a tempestade das coisas desencadeadas nos corrompa ou destrua”. O rigor ético – diz o poeta – é a responsabilidade civil e estética de quem escreve para com a fala colectiva, para com o seu tempo e o que nele trabalha a transformação, a libertação, solidariamente produzidas, mesmo quando a solidão cerca o ofício

 Ora, se há condições culturais, institucionais, económicas que nos determinam, somos também nós os criadores das circunstâncias. Isto quer dizer que há um espaço de autonomia do sujeito face às circunstâncias. Isto é, há um espaço de indeterminação não redutível a uma lógica simplista de causa-efeito, que joga na imprevisibilidade e na consciência do inacabamento dos processos históricos. É nesse espaço de indeterminação que os cidadãos comuns, criativamente trabalhando juntos, têm capacidade para provocar mudanças decisivas, no encalço de um tempo outro, que um outro mundo é possível (Nunes, R., 2015).

Lutemos pelo impossível!

                                                         Nazaré, 31 de Maio 2018

[1] Ver J. Habermas, 1986, Ciência e Técnica como Ideologia

[2] Com o 25 de Abril em andamento, Paulo Freire, em Lisboa, fez-se escutar nessa dádiva à causa da emancipação humana. A poesia estava lá, em corpo e alma!

[3] A Revolução que, em Portugal, pôs fim à mais longa ditadura da Europa (mais de 48 anos), decorre do levantamento militar de 25 de Abril de 1974, logo convertido em levantamento popular.

[4] Sublinado meu

[5] Ver Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844

[6] Ver K. Marx, Cap. VI Inédito de O Capital.

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